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terça-feira, 20 de agosto de 2013

Deerskin - Robin McKinley

Houve um tempo, antes da Disney, em que os contos de fadas, ou talvez deva dizer as histórias tradicionais, eram implacáveis, sem um vislumbre de piedade, e fantásticas para exorcisar os fantasmas mais terríveis da existência humana. Não tinham nada de cor de rosa, pegavam os touros pelos cornos e os dragões pelas presas, e mesmo os finais eram, com frequência, tão inconclusivos como a vida. 

Muitos dos recontos actuais destas histórias retomam este espírito das versões originais e criam histórias duras, mas poucas tenho lido tão negras quanto esta. Negra e fascinante, mesmo quando se detém nos pequenos gestos de sobrevivência da personagem. Voltemos atrás, para entender.

Deerskin conta a história da princesa Lissar Lisstar, filha única dos mais importantes e esplendorosos reis dos sete reinos, e sobretudo da mais bela rainha / mulher desses reinos. O amor (eu diria obsessão) entre os pais, e dos subditos pelos soberanos é tão grande, que Lissar passa desapercebida durante toda a infância, e aprende a timidez e a invisibilidade. E depois a rainha morre, e o rei passa por períodos de loucura e semi-sanidade. Lissar cresceu entretanto, e o rei revê nela a beleza da mãe. A história vai-se construindo em cima de uma impressão de que há algo de terrível e negro sob a capa de esplendor, perguntei-me muitas vezes se não se revelaria que a rainha-mãe era afinal alguma bruxa e estavam todos enfeitiçados. Mas McKinley não escolheu o caminho fácil, deixou a rainha nesse limbo de indefinição, introduziu na história um elemento fundamental não-humano, Ash, a cadela de Lisstar, criou um acontecimento absolutamente chocante na vida de Lissar (que eu não conto porque seria um grande spoiler), chocante para ela e para nós, comuns mortais, difícil de aceitar... não, impossível de aceitar, por muito que saiba que infelizmente acontece a muitas meninas. Estão a imaginar o que seja? É pior.

Lissar foge e, partir daí, parte dois e três, o sofrimento e a redenção estão par a par. Acompanhamos com muito detalhe de acções e sentimentos uma espécie de amnésia auto-induzida com que a personagem se defende, e o seu esforço para sobreviver, não apenas uma sobrevivência física, mas mental e emocional, em muito ancorada na presença da cadela, o "calor" desinteressado que a leva a executar sempre só mais um esforço, só mais um, e outro. É aliás em torno das entidades caninas que vai progredir a história e que surge um amor, tão bem pensado e desenvolvido que, de previsível, passa a natural, mas sem contemplações ou facilitismos, porque Lissar nunca deixa de ser uma criatura rasgada e quebrada, um animal ferido por fora e por dentro. 

O elemento mágico é potente mas discreto, surgindo sob a forma da Moonwoman, que lhe surge em determinadas alturas, e com a qual acaba por ser confundida, talvez com razão, e de uma espécie de divisão interna na própria personagem. Há mudanças mágicas, como o pelo do cão ou o vestido de pele de veado que não se suja, ou o longo período em que dormem ambas, dona e cadela, mas nem sempre sabemos quando estamos perante magia ou sonho/pesadelo, ou que porção do que estamos a ver poderá ser um efeito dos olhos de quem vê. É essa a principal virtude do texto, porque embora não duvidemos da existência do fantástico, não deixamos de o olhar sempre pelo lado humano, e não surge nunca como forma de resolução de todos os problemas, principalmente dos que não têm resolução. A sua presença fez-me lembrar muito as crenças celtas na natureza, e toda essa sensação do selvagem, da floresta, como entidade viva, está lá também. 

Ocasionalmente, acompanhar o percurso de Lissar, em particular o seu quotidiano e pensamentos, tornou-se um pouco fastidioso, o que imagino levaria alguns leitores a achar o texto aborrecido. Creio que faz parte do estilo da autora, porque já o notara em Sunshine, mas neste caso não me incomodou, embora me tenha feito ler uma ou outra passagem de forma menos atenta. Em geral, li compulsivamente, o que é significativo, teno em conta que não gosto particularmente de cães, e as linhas deste paperback são at~eo apertadinhas que, sempre que parei a meio de uma página, mesmo por segundos, tive que reler para "apanhar" outra vez a linha certa. Gostei muito.

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