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domingo, 16 de julho de 2017

Seja Feita a Tua Vontade, Paulo M.Morais


Evito, por princípio, opinar sobre os livros dos autores que conheço pessoalmente, em particular sobre aqueles por quem tenho estima e admiração, independentemente de ter ou não gostado do livro. Já me sucederam ambas as coisas. Não sou capaz, porém, de fugir a umas palavrinhas no fim desta leitura e, ao contrário da maior parte das opiniões que vou escrevendo, gostaria de as ter redigido no momento em que terminei, a "quente". Sabia bem o que queria dizer, não tive oportunidade e creio que as palavras vão custar-me mais a oganizar agora.

Li alguns livros do Paulo. O primeiro, do tempo do Colectivo Nau (se tiverem curosidade, vejam o que foi aqui) foi Revolução Paraíso, depois disso li Uma Parte Errada de Mim e este Seja Feita a Tua Vontade e parece-me que este texto está tão longe do primeiro que li, não em qualidade, que nunca esteve em causa, mas em estilo e tema, como o Paulo está já do escritor (e se calhar do homem) que impulsionou a Nau. É preciso que diga, antes de mais, que gostei bastante do Revolução, mas gosto mais assim. É um critério pessoal, claro, assente sobretudo no facto desta escrita me parecer também mais pessoal. 

Confesso que, dada a temática, hesitei em pegar no livro neste momento de menos ânimo. Estava curiosa, mas não o teria lido neste momento se não fosse curto e sobretudo se não conhecesse o livro anterior. Por tê-lo lido (e gostado), sei que a escrita do Paulo não é dada ao drama, mesmo quando o tema é trágico, nem à auto-comiseração, mesmo quando há razão para tristeza. Sei também que a linguagem  crua e simples, exacta, culta, atribui à narrativa uma certa leveza, não no sentido da superficialidade, mas de uma leitura escorreita, e uma emoção contida, sem excessos de caixa de Kleenex. 

É o que acontece também em Seja Feita a Tua Vontade, que acabei por ler em meia dúzia de sessões, muitas páginas de uma assentada - e juro que só fiquei com lágrimas nos olhos uma vez, não porque o episódio seja trsite, que é, mas por ser de sentimentos bonitos, de grande generosidade, que me suscitam sempre muito mais emoção. Nestas curtas páginas, o narrador coloca-se no centro desassombrado de uma relação e de uma situação complexa com o avô, antigo médico, que escolhe a sua própria morte, e disseca-as com muita clareza de espírito. A história cinge-se a um espaço e tempo limitados pela morte do avô, mas acaba por ultrapassá-lo, porque não se narra apenas o processo difícil do fim da vida na velhice, o autor vai tecendo em seu redor, uma espiral de sentimentos e dúvidas, por vezes persistentes, de rebeliões e conciliações, de referências culturais e pequenas histórias do passado e do presente, recordações com um cunho muito pessoal. Ou não.

Porque essa é a questão. Sendo uma história na primeira pessoa, acompanhada por imagens e listas em anexo, temos por quase certo que este narrador é o autor, que este é o seu avô, em busca de uma morte digna, que as recordações são suas. Vou, porém, fazer de advogado do diabo: e se não fossem? Faria diferença na forma como leriamos este livro? A meu ver, nenhuma. A leitura continuaria a parecer-nos uma espécie de vislumbre de momentos muito intímos numa relação única, e a parecer-nos verdadeiros. Porque é o que faz um autor, sobretudo quando a escrita é tão pessoal e na primeira pessoa, diluir a barreira entre a realidade e a ficção, até não se estar certo de se estar perante um texto quase biográfico ou uma fantasia, como são todas as obras de ficção. Ou como é, afinal, a nossa memória dos outros.   

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